Serendipidade
Um
artigo sobre um livro sobre a Serendipidade, bom pra refletir.
(Chico
Expedito)
Em um mundo cada vez mais racionalizado e programado, que limita a liberdade na
ciência, nas relações sociais e na internet, pesquisadores defendem o retorno à
serendipidade, a arte de descobrir o inesperado
Por Bolívar Torres
Inventado em 1754 pelo inglês Horace Walpole, o termo serendipidade expressa um
conceito velho como o mundo: a arte de encontrar o que não se está procurando.
Sua origem está na milenar lenda oriental “Os três príncipes de Serendip”,
sobre viajantes que, ao longo do caminho, fazem descobertas felizes sem nenhuma
relação com seu objetivo original. Trata-se de um estado de espírito, um poder
de percepção aberto à experiência, à curiosidade, ao acaso e à imaginação, que
ao longo dos séculos esteve na origem de grandes eventos históricos (como a
invenção acidental da penicilina por Alexander Fleming ou a descoberta da
América por Cristóvão Colombo).
Embora obscura e de difícil pronúncia, a palavra está cada vez mais presente em
pesquisas acadêmicas. Esquecido por muito tempo, o conceito virou bandeira de
diversos especialistas, que encontraram na antiga lenda oriental um contraponto
a uma sociedade demasiadamente controlada e programada, que não deixa margem
para o risco e as descobertas fortuitas. Em artigos, livros e conferências,
eles lamentam a perda da capacidade de se deixar levar pelo acaso, seja na
pesquisa científica, nas relações sociais e até mesmo na internet, onde os
caminhos antes sinuosos do hipertexto se encontram ameaçados.
Autora de “Serendipité: Du conte au
concept” (“Serendipidade: Do conto ao conceito”, em tradução livre),
lançado em janeiro na França pela Éditions du Seuil, Sylvie Catellin acredita que a história de Serendip nos devolve uma
maneira mais livre de apreender o mundo e de se relacionar com o conhecimento.
Em todos os campos, seja científico, pessoal ou artístico, vivemos uma
ditadura do número, da rentabilidade, dos modelos fechados e
hiperracionalizados — aponta Sylvie, professora de ciência, cultura e comunicação
na universidade de Versailles-Saint-Quentin-en-Yvelines. — O sucesso da
serendipidade é uma resposta a este mal-estar contemporâneo. É algo muito
forte, porque vem lá de trás, de um conto milenar, que viajou por todas as
culturas, línguas e épocas. Com a serendipidade, você inventa suas regras e
desvia dos caminhos batidos. Ela reumaniza o mundo e nos devolve a fantasia, a
imaginação, a consciência, o prazer de ver aquilo que os outros não veem.
Segundo Sylvie, há um mal-entendido recorrente quando o assunto é
serendipidade. Ao contrário do que muitos pensam, a palavra não remete apenas a
achados acidentais, mas a uma mistura de sagacidade e acaso. Para fazer grandes
descobertas, é necessário prestar atenção aos sinais — e saber interpretá-los.
Afinal, as revelações dos príncipes de Serendip só foram possíveis porque eles
sondaram as surpresas à sua volta, expandindo seus horizontes com a mente
preparada.
Todas as grandes descobertas tiveram em seu processo de origem a
serendipidade, porque nunca sabemos exatamente onde é preciso pesquisar —
afirma Sylvie. — E isso mostra que não podemos programar as descobertas. Por
outro lado, há toda uma corrente da ciência atual que trabalha com objetivos,
resultados e calendários pré-definidos. São pesquisas que acabam seguindo
apenas uma única direção.
A própria lógica do mundo contemporâneo, dividido em nichos e grupos de
afinidades, não promoveria o espírito explorador. Diretor do Centro para Mídia
Cívica do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e autor de diversos
livros sobre a liberdade na internet, o americano Ethan Zuckerman é um dos
principais críticos da homofilia — a tendência das pessoas em criar vínculos
com aqueles que compartilham os mesmos interesses, valores,cultura, etc. Um
fenômeno crescente tanto na estrutura de nossas cidades, fragmentada em guetos
sociais, culturais e econômicos, quanto na mentalidade comunitária que tomou
conta da internet. Como os sistemas de pesquisa, os aplicativos para celular e
os filtros das redes sociais nos oferecem a possibilidade de buscar exatamente
aquilo que queremos (ou, pelo menos, aquilo que acreditamos que queremos),
estaríamos, em todos os aspectos de nossas vidas, trocando o risco pela
segurança, sugere Zuckerman.
Serendipidade e risco estão intimamente conectados — explica Zuckerman. — E
um dos problemas do mundo contemporâneo é que não há estímulo para o risco.
Deslocamentos previsíveis
Zuckerman vê semelhanças entre a evolução dos espaços urbanos e do
funcionamento das redes digitais. Em sua origem, ambos se apresentavam como um
motor de serendipidade ao ligar diferentes tipos de pessoas e promover o
encontro com o estranho e o inesperado. Mas, assim como até mesmo os moradores
das capitais cosmopolitas se isolam em guetos, a internet passou a fechar seus
usuários em bolhas de afinidades. As redes sociais conectam cada vez mais
indivíduos — só que a maioria deles com interesses muito parecidos.
A maior parte dos moradores das cidades se desloca por um número muito
pequeno de lugares — analisa. — Poucas pessoas experimentam o que uma cidade
pode oferecer. E essa tensão entre a oportunidade de diversidade oferecida pela
cidade e a realidade do nosso isolamento é muito próxima do nosso uso da
internet. Por exemplo, eu me considerava uma pessoa muito plural. Mas, quando
George W. Bush foi reeleito, me dei conta que quase todos os meus contatos nas
redes tinham posições políticas parecidas com as minhas.
Segundo Zuckerman, nossa perspectiva é muito menos diversa do que pensamos — e
a limitação não data de agora. Em 1952, o sociólogo francês Paul-Henry Chombart
de Lauwe já mostrava que os deslocamentos de uma estudante parisiense podiam
ser bastante previsíveis; ao transcrever os percursos cotidianos da jovem em um
mapa da cidade, notou que se sobressaía um triângulo ligando o apartamento dela
à universidade em que estudava e à residência da sua professora de piano. O
esquema traduzia “a estreiteza da verdadeira Paris em que cada indivíduo vive”.
Algo parecido aconteceu com a internet. Até pouco tempo, o hipertexto era, de
fato, uma ferramenta notável de serendipidade. Em um simples clique, pulava-se
livremente de uma página a outra, viajando sem muita lógica entre conteúdos
discrepantes. Partia-se de uma busca sobre física quântica na Wikipedia e acabava-se
em um blog anônimo sobre complôs alienígenas. Nos últimos anos, porém, a
navegação se tornou menos dispersa e mais centralizadora. Um punhado de grupos
como Yahoo, Google, Facebook e Microsoft formaram uma espécie de condomínio, do
qual poucos usuários costumam se afastar.
Ao entregar nossos dados para essas empresas, permitimos que elas
personalizassem nossa experiência na web. Baseando-se num histórico pessoal de
navegação, sites como Google e Facebook criam uma hierarquia de conteúdo,
priorizando aquilo que eles consideram mais pertinente para seus usuários. É o
que muitos chamam de “ditadura do algorítimo”: as máquinas teriam criado uma
ilusão de serendipidade, nos fazendo acreditar que nossos achados na internet
são obra do acaso, quando na verdade foram guiados por um robô.
Autor de “O filtro invisível — o que a internet está escondendo de você”
(Zahar), o ativista Eli Pariser acredita que nossa experiência na web se tornou
uma espécie de “bolha de filtro”. Em um mundo com sobrecarga de informação, os
algorítmos praticariam uma forma muito sutil de censura, escolhendo as notícias
às quais estamos interessados — mas que não são necessariamente aquela que
precisamos ver. Esta curadoria, admite Pariser, sempre existiu: a diferença é
que ela não é mais feita por humanos, e sim por máquinas. Outro problema é que
se trata de uma edição invisível, que se apresenta como neutra quando na
verdade não é.
O que estamos vendo agora é a passagem de tocha dos editores humanos para os
algorítimos — lembrou Pariser, em uma de suas palestras no TED. — Só que os
algorítimos não têm o mesmo tipo de ética embutida dos editores. Se são mesmo
os algorítimos que vão fazer a curadoria do mundo para nós, então precisamos
nos certificar que eles não irão apenas se basear em relevância. Precisamos nos
certificar que eles também nos mostrarão coisas que nos deixam desconfortáveis,
coisas que são desafiadoras e importantes.
Terra incógnita
O próximo desafio do mundo digital, acredita Ethan Zuckerman, é repensar uma
internet que, de fato, nos conecte com estranhos e nos faça descobrir o
impensado.
É possível construir ferramentas que aumentem a serendipidade — avalia
Zuckerman. — No momento, tenho uma aluna que está trabalhando em um projeto
chamado Terra Incógnita. Com sua permissão, a ferramenta entra no seu browser,
olha para os artigos que você lê e percebe quais tópicos você se interessa de
forma geral, e em que países você está procurando por eles. Digamos que, depois
de uma semana, a ferramenta descobre que você se interessa por direitos
humanos, mas também pelo Brasil. Ela então lhe propõe artigos sobre este
tópico, mas em diferentes partes do mapa, oferecendo uma maior diversidade.
Para se ter serendipidade, você precisa saber o que a pessoa quer, mas também aquilo
que ela não sabe, e tendo consciência de que há partes do mundo que ela não
conhece.
O futuro promete novas ferramentas, mas nem todas parecem estimular a
serendipidade. Sylvie Catellin teme a popularização do Google Glass, um
acessório em forma de óculos que possibilita a interação dos usuários com
conteúdos em realidade aumentada (“Como o ‘1984’, de George Orwell, vão nos
dizer o que devemos ver”, justifica) e de sites e aplicativos de
relacionamento, como o Lulu e Tinder, que reduzem os encontros afetivos à
efetividade da lógica de mercado.
Todo progresso traz junto uma regressão — opina Sylvie. — Mas não é a técnica
em si que nos desumaniza, e sim a maneira como a usamos. O importante é que a
técnica não nos simplifique, não nos coloque em padrões e números. Por isso a
serendipidade é um chamado para a liberdade, para a desprogramação da nossa
vida. É algo que não podemos modelizar, mas podemos assimilar para ir além das
nossas vontades, além dos nossos encontros.
(Da coluna PROSA de O GLOBO)
Serendipismo:
Descoberta por Acidente e Sagacidade
A
LENDA ORIGINAL
“No
país de Serendip (hoje Sri Lanka) há muito tempo atrás, havia um rei chamado
Giaffer, o qual tinha três filhos. A estes, proporcionou o monarca a melhor
educação sob a tutela dos mais sábios mestres, tanto em matéria de ciência
quanto de moral. Ao final do processo educacional, quis Giaffer testar os
filhos e lhes chamando disse:
– Filhos, estou velho e já governei por muito
tempo; vou me retirar do governo para viver uma vida de busca espiritual. Quero
que vocês tomem conta do Reino.
Um a um, os três renunciaram à oferta, dizendo não
serem dignos desse poder. Surpreendido com a sabedoria deles, mas não
satisfeito, o Rei finge-se furioso com a negação e os manda para uma longa
jornada.
Aconteceu que, mal haviam chegado ao exterior,
resolvem descobrir pistas para identificar com precisão um camelo que jamais
haviam visto. Concluem, então, que o camelo é coxo, cego de um olho, sem um dos
dentes, transportando uma mulher grávida, e carregando mel de um lado e
manteiga do outro.
Quando, depois, encontraram um comerciante que
procurava um camelo, relataram as suas observações. O comerciante, pasmo,
acusa-os de terem roubado o camelo e leva os três príncipes diante do Imperador
Bahram, exigindo punição.
Os três príncipes negam qualquer crime, ao que
Bahram indaga como poderiam ter sido capazes de descrever com tanta precisão um
camelo sem nunca o terem visto. A partir das respostas, baseadas em evidências
somadas em pequenas pistas, dadas pelos três príncipes, percebe a inteligência
dos herdeiros de Serendip na identificação do camelo.
Os príncipes disseram que, como a grama havia sido
comida pelo lado da estrada onde estava menos verde, haviam deduzido que o
camelo era cego do outro lado. Também falaram que havia pedaços de grama semi
mastigados na estrada, do tamanho de um dente de camelo, eles deduziram que
haviam caído através do espaço deixado por dente perdido na boca do animal.
Como as faixas de marcas na estrada deixavam as
impressões de apenas três patas, a quarta estava sendo arrastada, indicando
pelo que devia ser coxo.
A questão da carga tinha sido muito simples, posto
que haviam formigas de um lado indicando que foram atraídas pelo mel, de um
lado da estrada, e o outro lado mostrava nódoas de manteiga derramada.
Quanto ao transporte da mulher, um dos príncipes
disse: “Imaginei que o camelo transportava uma mulher, porque havia notado,
próximo à trilha, onde o animal deixara marcas de ajoelhar-se, o rastro visível
de pés, claramente femininos, onde tinha resquícios de urina humana que, pelo
seu próprio odor, denotava ter sido deixados por uma mulher que tinha mantido
relações sexuais há algum tempo.
O outro príncipe, esclareceu que concluíram a
gravidez da mulher, pois próximo às marcas dos pés, haviam marcas de mãos
femininas, denotando que ela havia se apoiado com as mãos para urinar o que
configurava o peso da gravidez.
No momento que terminavam o relato ao Imperador,
adentrou à corte, um viajante que discorreu ter encontrado o camelo vagando
pelo deserto e que o havia reconduzido ao dono, bem como sua carga e
transporte.
O Imperador Bahram, além de, evidentemente, poupar
as vidas do três príncipes, os encheu de ricas recompensas e os elegeu
conselheiros do Império.
(Os três príncipes saíram, então, de
Serendip e seguiram a caminho do reino de um poderoso imperador chamado Beramo.
Durante sua estada nesse reino, diversas ocorrências são elucidadas pelos três
príncipes, impressionando o imperador Beramo pela sagacidade deles. Assim,
Beramo os convida a permanecer em seu reino. Durante esse período, os três
príncipes recebem várias tarefas do imperador, sendo todas elas cumpridas.
Todavia, enquanto os príncipes estiveram ausentes do reino na execução de uma
tarefa, Beramo passa por um sofrimento por causa de uma paixão. Isto é narrado
no livro através de 7 poemas e ao final os três príncipes com sabedoria ajudam
o imperador a superar o sofrimento. Depois disso, eles retornam a Serendip e a
estória termina com os três príncipes tornando-se em sábios governantes.
Em função dessa
estória, Horace Walpole (1717-97), filho do primeiro ministro Robert Walpole,
antiquário e autor do romance gótico “The Castle of Otranto” (Londres, 1765),
usou a palavra `serendipity’ em uma de suas correspondências para o enviado do
rei George II (Florença). Pode-se dizer que este foi o primeiro registro
encontrado da palavra e esta correspondência juntamente a outras encontram-se
contidas nos 31 volumes de correspondências de Horace Walpole (New Haven,
1937), editado por Wilmarth Sheldon Lewis.)